Clube de leitura perdido e reencontrado

Encontrei este post no meio no meu PC. Diz respeito aos livros que li na segunda metade de 2021, antes de acontecer tudo ao mesmo tempo e ter decidido fazer uma pausa no blog. Aqui fica o que tinha escrito:

O Miguel Sousa Tavares sempre me irritou. Tem uma vibe arrogante, antipática, polémica só porque sim. Escreve como fala e por vezes dá alguns pontapés na gramática como por exemplo quando usa o verbo “realizar” com o sentido de “aperceber-se de que”, ou “lembrar-se que” em vez de “lembrar-se de”. Pormenores… Mas eu gosto bastante dos livros dele.

O seu mais recente livro, Último Olhar (2020), é uma boa referência para a memória futura dos acontecimentos e polémicas à volta da pandemia da COVID-19. Fala sobre um velho que viveu a guerra civil espanhola em criança, vê o seu pai lutar contra o fascismo e acabar exilado em França num campo de refugiados até ser deportado junto com o seu filho, o protagonista, para um campo de concentração nazi. Separados logo à chegada, nunca mais volta a ver o pai, e isso impacta todo o resto da sua vida. Sobrevive até à libertação do campo Mauthausen para descobrir que a mãe e a irmã acabaram por falecer no campo de refugiados em França. E depois vai vivendo com altos e baixos até ser velho e se mudar para uma casa de repouso.

Mas isto é só um prelúdio, a verdadeira história faz uma crítica à maneira como a Europa tratou inicialmente a terceira idade em lares durante a pandemia, deixando os velhotes por vezes a morrer sem os cuidados médicos necessários. A ação passa-se em Espanha, mas poderia bem se passar em Portugal. Acrescenta à mistura uma história de amor entre uma médica espanhola e um médico italiano na frente COVID-19. Lê-se bem e eu gostei.

Uma história de Xadrez de Stefan Zweig é na verdade um pequeno conto. Tem apenas 72 páginas e conta a história de um passageiro num navio que fica a saber que a bordo também viaja um campeão mundial de xadrez, o que lhe faz despertar bastante curiosidade e alguma admiração. Numa tentativa de se aproximar do mestre, o qual é descrito como sendo uma pessoa simplória e algo obtusa cujo único talento é jogar xadrez, acaba por travar conhecimento com um antigo advogado austríaco que no passado dirigiu uma empresa de administração patrimonial e que acabou preso pela Gestapo num hotel.

À primeira vista, não me parece que estar preso num hotel seja uma coisa assim tão insuportável. Em fazendo o paralelo com os tempos de confinamento, até acho que resisti bastante bem. No entanto, o advogado explica que ter estado sujeito à tortura da solidão, interrompida apenas para lhe arrancarem informações sobre o paradeiro de fortunas desaparecidas, quase o levou à loucura. Tendo como único companheiro num quarto despido um livro sobre táticas de xadrez, que roubara a um inspetor da Gestapo enquanto esperava para ser interrogado, o advogado passa o seu tempo fora dos interrogatórios sozinho no quarto a jogar xadrez imaginário. Já no navio, o narrador e um grupo de outros passageiros convencem o advogado austríaco a jogar uma partida contra o parvo do campeão mundial. Mas as coisas não correm como esperado…

Estamos habituados àquela imagem do mestre de xadrez como sendo a personificação excêntrica da inteligência e da estratégia, mas nesta história de quem gostamos é do advogado aristocrata meio louco. Com a distância que separa a minha geração dos horrores do nazismo, posso dizer que este é um livro que serve de distração.

Depois voltei à Dalene Matthee. Gostei tanto do outro livro dela do qual falei aqui, que resolvi encomendar mais um da mesma autora sul-africana. The Day the Swallos Spoke conta a história de uma miúda Afrikaner cujo maior desejo é poupar dinheiro suficiente para sair da África do Sul e recomeçar a vida num país em paz. Este desejo é motivado pela onda de violência crescente nos anos 80 no país e também por estar convencida de que a África do Sul não quer filhos brancos. O primeiro capítulo, constituído pelo parágrafo que transcrevo, resume o sentimento da protagonista:

“She no longer asks, no longer argues, she knows: Africa does not want white children. If you have a white skin you can’t shelter anywhere – not even in the south, at its feet. Not any longer. It’s best to pack up and find yourself somewhere else to live – before the river bursts its banks.”

Gostei do livro por oferecer uma série de informações sobre as relações e diferentes etnias na África do Sul e sobre a cegueira provocada pela ambição, as traições, o entregar o outro para se salvar a si próprio. Todo o texto é prosa e até bastante simples, sem palavras caras ou demasiados recursos estilísticos, mas há certas frases que me lembram poemas. Especialmente as partes que descrevem a relação da protagonista com a montanha que se vê da janela do seu quarto e que faz as vezes de anjo da guarda, conselheira e amiga. Ler este livro foi como se eu própria falasse com a montanha e sentisse o peso de diamantes nas minhas mãos. Portanto, recomenda-se.     

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, conta a história de uma família que se vê obrigada a deixar Luanda e voltar à metrópole em 1975. O narrador é um rapaz de 15 anos que é forçado a adaptar-se a uma nova realidade, longe de casa, dos amigos, e de tudo o que sempre conheceu. Vive alguns episódios com a inocência infantil própria da idade, outros com o terror maduro do desamparo, outros ainda com uma certa graça. É uma história de recomeços, resiliência e preconceito. Através de pensamentos, às vezes desconexos, o Rui vai contando as dificuldades em se adaptar a Lisboa, a qual julgava ser o suprassumo da elegância e modernidade, mas que afinal se revela pequena, tacanha e fria. E isto tudo na companhia de uma mãe à beira de um esgotamento, uma irmã que não compreende e a lembrança de um pai que ninguém sabe se está vivo ou morto. 

That’s all folks.



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