Clube de Leitura
Tomada por uma onda de pseudo-intelectualismo e por pensar que retrataria o tema das dependências com mestria e reflexão, resolvi ler “o Jogador” do Fiódor Dostoiévski. Pois. Não foi o que estava à espera. Confesso que até tive alguma dificuldade em seguir o enredo, não porque fosse difícil, mas porque me que causava um tédio de morte. Só com a chegada da avó no capítulo nono (são 17 no total) é que a ação se intensifica com a senhora a perder no casino quase tudo o que tinha. A partir deste ponto os diálogos tornam-se frenéticos e embora o personagem principal comece por aconselhar a avó a não jogar porque o mais certo é perder, no fim começa a jogar ele próprio, ficando totalmente viciado e transformado a ponto de toda a sua vida deixar de lhe fazer sentido. Não gostei muito desta transição, não me pareceu natural. Mas se calhar é porque não sou dependente e por isso não consigo me identificar com aquele tipo de atitude.
Bem, por alguma razão as obras
que toda a gente refere do Dostoiévski são o “Crime e Castigo” e “Os Irmãos
Karamázov”. Vou dar-lhe uma segunda oportunidade no futuro. O sucesso de um
livro também depende em larga parte da predisposição do leitor. Por isso, penso
que simplesmente esta não foi a melhor altura para ler este livro.
No entanto, esta pequena desilusão foi rapidamente esquecida com a leitura de “Fiela’s child” da Dalene Matthee, uma escritora sul-africana que traduziu o seu próprio livro do original em afrikaans para inglês. Devo dizer que já há muito tempo que não me sentia tão envolvida com uma leitura. Como disse acima, o sucesso de um livro depende em larga escala do leitor e das coisas com as quais este se identifica. E eu sou mãe, por isso compreendi bem o desespero de uma mãe a quem é retirado um filho, a procura incessante, as portas que se fecham por preconceito, mas que não são suficientes para levar à desistência ou conformidade.
Sem querer contar muito da
história porque vale a pena a surpresa, posso adiantar que a ação se passa na
África do Sul na segunda metade do século XIX, mas poderia muito bem passar-se
nos dias de hoje. Uma criança perde-se na floresta, uma criança é achada do
outro lado da montanha onde é criada até aos 10 anos e depois arrancada da
única família que conhece e devolvida aos supostos pais biológicos. A nova
família é composta por estranhos, vivendo uma realidade social completamente
diferente, num clima completamente diferente. Nada faz sentido: os hábitos, a
alimentação, as prioridades, os medos, as relações de poder e hierarquia
familiar. E nem mesmo o passar dos anos,
nem a convivência e consequente aceitação do outro, consegue atenuar o
sentimento de identidade perdida. É mesmo lindo. Claro que toda a história está
construída para torcermos pela mãe negra, que é uma mulher forte e trabalhadora
que tudo faz pelo bem dos filhos, enquanto a família branca é regida por um pai
preguiçoso, uma espécie de chico-esperto sempre a inventar esquemas para levar
a melhor sem muito esforço. Mas não é um argumento forçado. Gostei tanto que já
encomendei outro livro da mesma autora.
Entretanto, não consegui esperar mais, e fui acabar de ler a saga dos inspetores criminais Pia Sander e Oliver von Bodenstein, de que já falei aqui. O último livro da coleção chama-se Muttertag e encerra uma série de pontas soltas deixadas em volumes anteriores. Li esta coleção no original com gosto, especialmente para praticar a leitura em alemão, e tenho pena de ter chegado ao fim. Mas já disse isto no Clube de Leitura de maio sobre outro livro, e a minha querida Nele que me perdoe, mas se em vez de 550 páginas o livro tivesse apenas 350, acho que ganharia na fluidez narrativa. As últimas 100 páginas são extraordinárias e lêem-se num ápice, com acontecimentos surpreendentes a cada instante. Ainda o leitor não recuperou de um primeiro choque e já está a acontecer outra coisa que vai mudar tudo. Muito fixe.
Pode ser que ainda saia outro
volume no futuro, afinal, ninguém importante morre, nem há uma despedida
definitiva. Vamos ver. Entretanto já estão a decorrer as gravações que
transformam o livro em filme. Aliás, todos os livros da série são adaptados
para televisão. O próximo vai passar no canal ZDF no início de 2022. Can’t wait!
Terminei o mês de junho com o livro “Promise me you’ll shot yourself — The downfall of ordinary Germans in 1945” de Florian Huber. Li a versão inglesa porque o meu parceiro de leituras também o queria ler e nós temos um entendimento: nem eu encomendo livros em alemão que ele queira ler, nem ele encomenda livros em francês que queira eu.
Não é um romance, é mais uma
descrição do estado de espírito dos alemães a seguir à capitulação. A estrutura
do livro é um pouco confusa com uma primeira parte a descrever uma série de
suicídios na cidade de Demmin; uma segunda a provar que o que aconteceu em
Demmin acabou por acontecer em toda a Alemanha; uma terceira a justificar o
fascínio por Hitler e o orgulho recuperado após a humilhação imposta pelo
Tratado de Versalhes, o fracasso da República de Weimar e depressão económica
de 1930; e uma quarta e última parte com considerações sobre os acontecimentos.
Digo que é um pouco confuso por o autor fala de várias pessoas que, ou se
suicidaram ou conseguiram sobreviver, e a páginas tantas o leitor já não sabe
quem é quem. Mas é um livro interessante.
Os habitantes de Demmin
suicidaram-se em massa após o abandono da população pelo exército alemão. Assim
que ficou claro que o exército russo se aproximava e não havia hipótese de resistência,
os soldados alemães atravessaram as pontes para fora da cidade nos seus
tanques, fizeram as pontes explodir para não serem perseguidos e deixaram a
população indefesa encurralada. Durante os anos de propaganda nazi foi sendo dito
às pessoas que os russos eram verdadeiros demónios que torturavam os homens e
crianças inimigas e violavam todas as mulheres. O que em guerra não é mentira,
nem se aplica apenas aos russos. Por isso, muitos acharam por bem atentar
contra a própria vida em vez de morrer às mãos dos inimigos. Outros, além do medo
do inimigo, quiseram seguir o seu Führer, que também se suicidou em Berlim, até
ao fim. Outros ainda acreditavam na grandiosidade do povo alemão e preferiram a
morte a uma nova humilhação.
O método mais comum para o
suicídio em massa em Demmin foi o afogamento porque a cidade é rodeada por três
rios e água é o que não falta. Também existem várias árvores, por isso o
enforcamento ao ar livre também foi comum. Houve quem escolhesse o cianeto. Quem
tinha armas pôde optar por um tiro na cabeça. Aliás, o título do livro é
baseado num episódio de numa família contado brevemente na página 124. Transcrevo
porque achei bonito e demonstra bem o estilo do livro:
“In many German families,
honour came before life. On 20 April, the Führer’s birthday, 21-year-old
Friederike Grensemann said goodbye to her father, who had been called up to the
Volkssturm to defend the city. They said little. Friederike’s father was
already wearing his uniform and armband and went to fetch his leather coat.
Then he pressed his pistol into his daughter's hand. ‘It’s over, my child’, he
said. ‘Promise me you’ll shoot yourself when the Russians come, otherwise I won’t
have another moment of piece’.
‘He also instructed
me to put the barrel in my mouth’, Friederike would later remember. ‘Then
another hug, a kiss! All in silence. He went’. (…) She never saw her father
again.”
E os russos acabaram por chegar. A Friederike lembrou-se da promessa feita ao pai, mas não conseguiu premir o gatilho.
E foram estes os livros que li entre 1 de maio e 28 de junho. That’s all folks!
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